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Maria Quitéria nasceu no sítio do Licurizeiro, uma pequena propriedade no Arraial de São José das Itapororocas, na comarca de Nossa Senhora do Rosário do Porto de Cachoeira,
atual município de Feira de Santana no estado da Bahia. A data mais
aceita pelos pesquisadores para o seu nascimento é a de 1792. Foi a
filha primogênita dos brasileiros Gonçalo Alves de Almeida e Quitéria
Maria de Jesus. Em 1803, tendo cerca de dez ou onze anos de
idade, perdeu a mãe, assumindo a responsabilidade dos afazeres
domésticos e da criação de seus irmãos. Cinco meses após enviuvar, o pai
casou-se em segundas núpcias com Eugênia Maria dos Santos, que veio a
falecer pouco tempo depois, sem que da união nascessem filhos. A família
mudou-se então para a fazenda Serra da Agulha. Na nova
residência, Gonçalo Alves casou-se pela terceira vez, com Maria Rosa de
Brito, com quem teve mais três filhos. A nova madrasta, afirma-se, nunca
concordou com os modos independentes de Maria Quitéria. Embora sem uma
educação formal, uma vez que à época as escolas eram poucas e restritas
aos grandes centros urbanos, Maria Quitéria aprendera a montar, a caçar e
a usar armas de fogo, conhecimentos essenciais à época.
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Maria Quitéria encontrava-se noiva quando, entre 1821 e 1822,
iniciaram-se na Província da Bahia as agitações contra o domínio de
Portugal. Em Janeiro de 1822 transferiram-se para Salvador as tropas
portuguesas, sob o comando do Governador das Armas Inácio Luís Madeira
de Melo, registrando-se em fevereiro o martírio de Soror Joana Angélica,
no Convento da Lapa, naquela Capital.
Em 25 de junho, a Câmara
Municipal da vila de Cachoeira aclamou o príncipe-regente D. Pedro como
"Regente Perpétuo" do Brasil. Por essa razão, em julho, uma canhoneira
portuguesa, fundeada na barra do rio Paraguaçu, alvejou Cachoeira,
reduto dos independistas baianos. A 6 de setembro, instalou-se na vila o
Conselho Interino do Governo da Província, que defendia o movimento
pró-independência da Bahia ativamente, enviando emissários a toda a
Província em busca de adesões, recursos e voluntários para formação de
um "Exército Libertador".
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Tendo
o velho Gonçalo, viúvo, sem filho varão, se escusado a colaborar, para a
sua surpresa, a filha Maria Quitéria, pediu-lhe autorização para se
alistar. Tendo o pedido negado pelo pai, fugiu, dirigindo-se a casa de
sua meia-irmã, Teresa Maria, casada com José Cordeiro de Medeiros e, com
o auxílio de ambos, cortou os cabelos. Vestindo-se como um homem,
dirigiu-se à vila de Cachoeira, onde se alistou sob o nome de Medeiros,
no Regimento de Artilharia, onde permaneceu até ser descoberta pelo pai,
duas semanas mais tarde.
Defendida pelo Major José Antônio da
Silva Castro (avô do poeta Castro Alves, comandante do Batalhão dos
Voluntários do Príncipe (popularmente apelidado de "Batalhão dos
Periquitos", devido aos punhos e gola de cor verde de seu uniforme), foi
incorporada a esta tropa, em virtude de sua facilidade no manejo das
armas e de sua reconhecida disciplina militar. Aqui, ao seu uniforme,
foi acrescentado um saiote à escocesa.
A 29 de outubro seguiu com
o seu Batalhão para participar da defesa da ilha de Maré e, logo
depois, para Conceição, Pituba e Itapoã, integrando a Primeira Divisão
de Direita. Em fevereiro de 1823, participou com bravura do combate da
Pituba, quando atacou uma trincheira inimiga, onde fez vários
prisioneiros portugueses (dois, segundo alguns autores), escoltando-os,
sozinha, ao acampamento.
Em 31 de março, no posto de Cadete, recebeu, por ordem do Conselho Interino da Província, uma espada e seus acessórios.
Finalmente,
a 2 de julho de 1823, quando o "Exército Libertador" entrou em triunfo
na cidade do Salvador, Maria Quitéria foi saudada e homenageada pela
população em festa. O governo da Província dera-lhe o direito de portar
espada. Na condição de Cadete, envergava uniforme de cor azul, com
saiote, além de capacete com penacho.
A heroína da Independência
Por
seus atos de bravura em combate, o General Pedro Labatut, enviado por
D. Pedro para o comando geral da resistência, conferiu-lhe as honras de
1º Cadete.
No dia 20 de agosto foi recebida no Rio de Janeiro
pelo Imperador em pessoa, que a condecorou com a Imperial Ordem do
Cruzeiro, no grau de Cavaleiro, com seguinte pronunciamento:
"Querendo conceder a D. Maria Quitéria de Jesus o distintivo que
assinala os Serviços Militares que com denodo raro, entre as mais do seu
sexo, prestara à Causa da Independência deste Império, na porfiosa
restauração da Capital da Bahia, hei de permitir-lhe o uso da insígnia
de Cavaleiro da Ordem Imperial do Cruzeiro".
Além da comenda, foi
promovida a Alferes de Linha, posto em que se reformou, tendo
aproveitado a ocasião para pedir ao Imperador uma carta solicitando ao
pai que a perdoasse por sua desobediência.
Os últimos anos
Perdoada
pelo pai, Maria Quitéria casou-se com o lavrador Gabriel Pereira de
Brito, o antigo namorado, com quem teve uma filha, Luísa Maria da
Conceição.
Viúva, mudou-se para Feira de Santana em 1835, onde
tentou receber a parte que lhe cabia na herança pelo falecimento do pai
no ano anterior. Desistindo do inventário, devido à morosidade da
Justiça, mudou-se com a filha para Salvador, nas imediações de onde veio
a falecer aos 61 anos de idade, quase cega, no anonimato. Desconhece-se
o local de seu túmulo. Testemunhos
O pesquisador Aristides Milton, nas Efemérides Cachoeiranas, considera Maria Quitéria "tão valente quanto honesta senhora".
A inglesa Maria Graham, por sua vez, deixou registrado:
"Maria de Jesus é iletrada, mas viva. Tem inteligência clara e
percepção aguda. Penso que, se a educassem, ela se tornaria uma
personalidade notável. Nada se observa de masculino nos seus modos,
antes os possui gentis e amáveis." (Journal of a voyage to Brazil) Homenagens
Maria
Quitéria é homenageada por uma medalha militar e por uma comenda com o
seu nome, na Câmara Municipal de Salvador. Do mesmo modo, a Câmara
Municipal de Feira de Santana instituiu a Comenda Maria Quitéria, para
distinguir personalidades com reconhecida contribuição à municipalidade,
e ergueu-lhe um monumento na cidade, no cruzamento da avenida Maria
Quitéria com a Getúlio Vargas.
A sua iconografia mais conhecida é
um retrato de corpo inteiro, pintado por Domenico Failutti c. 1920.
Presenteado pela Câmara Municipal de Cachoeira, integra atualmente o
acervo do Museu Paulista, em São Paulo.
Por Decreto da
Presidência da República, datado de 28 de junho de 1996, Maria Quitéria
foi reconhecida como Patrona do Quadro Complementar de Oficiais do
Exército Brasileiro. A sua imagem encontra-se em todos os quartéis,
estabelecimentos e repartições militares da Arma, por determinação
ministerial.
Bibliografia
* ALMEIDA, Norma Silveira Castro de; TANAJURA, A. Rodrigues Lima. José
Antônio da Silva Castro - o Periquitão. Salvador: EGBA, 2004. ISBN
85-903965-1-7 * AMARAL, Braz do. História da Independência da Bahia. Salvador: Livraria Progresso Ed., 1957. * MENDES, Bartolomeu de Jesus. A Festa do Dois de Julho em Caetité - do cívico ao popular. Caetité: Gráfica Castro, 2002. * PALHA, Américo. Soldados e Marinheiros do Brasil. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército-Editora, 1962. p. 47-51. * SILVA, Joaquim Norberto de Souza. Brasileiras Célebres (ed. fac-similar). Brasília: Senado Federal, 1997. * SOUZA, Bernardino José de. Heroínas baianas. * TAVARES, Luís Henrique Dias. História da Bahia. Salvador: UNESP; São Paulo: EDUFBA, 2001.
Fonte: Wikipédia.
EU GOSTARIA DE ENTRAR NUA NO RIO
Eu
gostaria de entrar nua no rio, caso estivesse no sítio do meu pai. Mas
estou aqui entre homens, somos todos soldados, e o banho no Paraguaçu é
forçado. Os portugueses de uma canhoneira bombardearam Cachoeira, então
um bando de Periquitos, e entre eles eu e mais cinco ou seis mulheres,
entramos no rio, de culote, bota e perneira, dólmen abotoado e baioneta
calada.
Queríamos que os agressores desembarcassem para o combate
em água rasa da margem. E eles vieram, aos brados. Traziam armas
brancas. Alguns as mordiam com os dentes. O encontro deu-se num banco de
areia, com água pela cintura. Senti quando a água fria subiu pelas
pernas, abraçou as coxas e espalhou-se pelas virilhas.
Um toque
frio, desagradável. Com o calor da luta, tornou-se morno. E houve um
instante em que eu tinha água pelos seios. Senti que os mamilos se
enrijeciam sob a túnica. Pensei outra vez no sítio, na rede em que
costumava embalar-me. Ali tudo era cálido, os panos convidavam ao sono.
Aqui, luta-se pela vida, pela nossa Cachoeira, pela Pátria.
Mas
uma voz secreta me sopra que também luto por mim. Estou guerreando, sim,
para libertar Maria Quitéria de Jesus Medeiros da tirania paterna, dos
sofridos afazeres domésticos, da vida insossa. Ah, eu combato, com água
no nível dos peitos, pela libertação da Mulher, pela nova Mulher que
haverá de surgir. Minha baioneta rasga o ventre de um português que
não quer reconhecer a Independência do Brasil gritada, lá no Sul, pelo
Imperador D. Pedro.
AH, EU MORRO DE VERGONHA!
Nunca
pensei em pisar num palácio. Quitéria, eu disse a mim mesma, foste
criada para andar de pés nus e cabelos ao vento. Quitéria, és uma
tabaroa. E no entanto, o que fizeram de mim? Ou melhor, o que a vida fez
de mim? Nunca pensei que, ao pegar em armas, ao entrar naquela guerra
do Recôncavo, eu acabaria aqui, hoje, nesta recepção palaciana. O
Imperador vai entrar.
É ele, é ele. Altaneiro no porte, com
aquelas dragonas douradas, o dólmen justo salientando o peito, a barba
negra. A gente conhece logo um Imperador pela barba e, também, pelo
jeito direto e franco de olhar. Um olhar sem medo, u, olhar dentro dos
olhos —olhar de quem tudo ousa, de quem sabe que tudo pode.
Cavalheiro
distinto, garboso e galante, o Imperador. Irritou-se com as exigências
de seus compatriotas, reunidos num concelho chamado Cortes, e, a
cavalo, soltou o grito. Foi fácil, aqui no Rio de Janeiro e em São
Paulo, porque havia um José Bonifácio, havia outros antigos
conspiradores em prol da Independência. Pois D. João VI não havia
previsto, não havia aconselhado: “Pedro, algum dia o Brasil se separará
de Portugal. Se assim for, põe a coroa sobre tua cabeça, antes que algum
aventureiro lance mão dela”.
Entra o Imperador no salão
espelhante, cheio de cadeiras e canapés forrados de veludo verde e
vermelho. Um luxo. Faianças, cristais, candelabros, pesados reposteiros.
Deve ser bom viver aqui nestes luxos, mas prefiro os meus matos, os
campos rasos da minha terra. Estou atordoada, com uma zoeira nos
ouvidos, mal entendo o que diz em discurso o nosso comandante. Ouço
palavras soltas: “heroína”, “mulher valente”, “amor à Pátria nascente”. “Agüenta,
Quitéria”, eu digo aos botões da minha túnica. “Tu não és soldado,
mulher?” Abro os olhos, o Imperador está diante de mim, curva-se e
sorri. Tenho vontade de passar a mão naquela barba negra que parece
seda. Mas a minha palma é calosa, com certeza o Imperador retrocederá,
assustado — e me prendem. Fecho de novo os olhos. O Imperador me
condecora, um sujeito de roupa espalhafatosa lê um papel em que me
concedem um soldo para o resto dos meus dias. A Pátria agradece, mas,
francamente, eu não pensava em recompensas. Os dedos do Imperador D.
Pedro tocam-me a gola, roçam-me o busto. Ah, eu morro de vergonha. Quem
diria que eu, Quitéria, donzela criada quase solta pelos campos, com os
animais, seria alvo de tantos olhares neste palácio do Campo de São
Cristóvão? As damas de saia arrastando no chão só faltam me comer com os
olhos. Tenho o rosto em fogo, as orelhas ardem. Será que vou dar
chilique em público?” |
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